A pandemia ocorrida em 2020 provocou uma série de mudanças nas práticas educacionais pelo mundo todo. Em especial no Brasil, uma proposta de alteração da lei1 que dispunha sobre o atendimento da alimentação escolar enfim vigorou. A lei 13.987/2020, sancionada em 07 de abril, determinou no seu Art. 21-A que:
“Durante o período de suspensão das aulas nas escolas públicas de educação básica em razão de situação de emergência ou calamidade pública, fica autorizada, em todo o território nacional, em caráter excepcional, a distribuição imediata aos pais ou responsáveis dos estudantes nelas matriculados, com acompanhamento pelo CAE, dos gêneros alimentícios adquiridos com recursos financeiros recebidos, nos termos desta Lei, à conta do Pnae.” 2
Que baita desafio para as equipes escolares: reorganizar o fluxo dos alimentos, entrar em contato com as famílias beneficiárias e fazer a distribuição da comida com máxima brevidade (pois algumas escolas haviam recebido recentemente gêneros alimentícios perecíveis).
Quando se fala em escolas públicas, a impressão que passa, para quem não conhece as práticas gestoras de instituições de ensino, é de que há um padrão em gestão de recursos. Contudo não há. Em primeiro lugar, cabe salientar que União, estados e municípios têm legislações diferentes para os fluxos financeiros. Cada estado e cada município têm suas particularidades.
Ou seja, o dinheiro dos impostos que cabe ao Pnae é dividido para atender às escolas de todo o território nacional. Porém os caminhos entre a divisão desses valores e a efetiva entrega da comida às famílias dos estudantes beneficiários são diferentes. E às vezes é necessária uma “observação” do Ministério Público.
Mas esse assunto não é a pauta deste artigo. Aqui quero falar sobre os desafios daqueles que estão fazendo sua parte e entregando os alimentos às famílias. Conversei com gestores de algumas escolas públicas no Rio Grande do Sul sobre as dificuldades e os aprendizados que essa nova realidade trouxe para as equipes escolares 3.
Até março de 2020, os recursos (conforme seus caminhos) eram aplicados na aquisição dos gêneros alimentícios, os quais eram entregues nas escolas, preparados nas suas respectivas cozinhas e distribuídos aos estudantes presentes nas aulas. Com a suspensão das aulas em virtude da pandemia de COVID-19, em um primeiro momento, as escolas estavam abastecidas de alimentos, mas sem a presença do público ao qual se destinavam.
Fez-se necessária uma readequação no processo de destinação da merenda escolar para atender aos mais carentes e a proposta de alteração legal, que já estava em discussão há algum tempo e resultou na lei 13.987/2020, trouxe atenção à questão da necessidade alimentar dos menores.
A preocupação nutricional remonta à década de 1940, quando já se discutia em âmbito governamental, a proposta do Instituto de Nutrição da oferta pelo Governo Federal da alimentação escolar, o que não se concretizou na época, visto que a aplicação dos recursos financeiros pela União objetiva outros aspectos. Somente em 1955 concretizou-se a criação da Campanha de Merenda Escolar (CME) subordinada ao Ministério da Educação 4.
Hoje um perfil comum de estudantes de escolas públicas são crianças e adolescentes oriundos de famílias carentes, muitas vezes residentes em ocupações de áreas verdes ou áreas de risco. Outro aspecto que chama atenção foi o impacto econômico que a pandemia trouxe: muitas famílias que até o início de 2020 tinham uma renda que lhes permitia certa segurança financeira, tornaram-se vulneráveis com o isolamento social. Essa nova configuração aumentou a complexidade do cumprimento da lei 13.987/2020, considerando a relação que a nutrição tem com o aprendizado.
Nas escolas observadas, a aquisição dos alimentos foi feita pelas secretarias de educação, que os redirecionou às escolas e a estas coube a tarefa de contatar as famílias e distribuir as comidas. Uma das dificuldades citadas, foi o acesso ao sistema do Bolsa Família para saber quem deveria ser contatado. A não atualização dos dados pelos pais à escola (telefone, endereço, etc) também dificultou o contato. Além disso, algumas famílias mudaram de cidade e não foi realizada a transferência escolar dos menores.
Outro aspecto importante de salientar foi a conjuntura epidemiológica. Tanto quem entregou, quanto quem recebeu os kits de alimentos, tinha medo do contágio por coronavírus, mesmo sendo observados todos os procedimentos preventivos. Além do mais, a decretação de “bandeira vermelha” em regiões do Rio Grande do Sul, dificultou ainda mais as distribuições, considerando que cada município remodelou o processo conforme sua realidade 5.
Em algumas instituições de ensino, a entrega chegou a ser suspensa visando preservar a saúde de ambas as partes. Porém, dado o caráter essencial dos itens e considerando-se que algumas famílias se encontravam em situação de fome, a procura se direcionou a outras entidades de caridade ou filantropia, como igrejas e outros tipos de associações de auxílio.
Entre frustrações e esperanças, muitos aprendizados surgiram para as equipes escolares com essa experiência. O papel social da escola junto à comunidade está sendo repensado. E seu formato educacional também merece um novo olhar com a nova realidade que se desenha.
Muitas reflexões cabem frente a essa nova configuração social surgida a partir de 2020. Sendo, por lei, a merenda escolar um direito de todos os estudantes de escolas públicas, como contemplar a todos em uma sociedade em plena transformação? Estaria nosso país vivendo, de fato, uma nova distinção social entre os que têm e os que não têm acesso aos meios para uma educação a distância (EAD)? O porvir estaria se encaminhando para uma educação híbrida (presencial e EAD)? Como atender a alimentação escolar se fosse este o caso? Como mensurar quantidades, público alvo e recursos financeiros para esse destino?
Vamos pensar sobre isso?
Notas:
1 - A Lei 11.947/2009, que dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nos 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória no 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei no 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências, pode ser conferida em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11947.htm
2 - O Conselho de Alimentação Escolar (CAE) é um órgão colegiado de caráter fiscalizador, permanente, deliberativo e de assessoramento, instituído no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e tem como principal função zelar pela concretização da alimentação escolar de qualidade, por meio da fiscalização dos recursos públicos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que complementa o recurso dos Estados, Distrito Federal e Municípios, para a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE. Para maiores informações acesse: https://www.fnde.gov.br/
3 - A íntegra das entrevistas pode ser conferida através do blog https://ceciliaceleste.blogspot.com
4 - Para maiores informações sobre o histórico do PNAE, consultar o endereço https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/pnae/pnae-sobre-o-programa/pnae-historico
5 - Maiores informações podem ser obtidas através das páginas https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/geral/cinco-regi%C3%B5es-entram-na-bandeira-vermelha-do-distanciamento-controlado-1.438987 , ou https://www.girodegravatai.com.br/wp-content/uploads/2020/06/decreto-oficial.pdf (Decreto Municipal 18.014/2020 de Gravataí) e também https://www.viamao.rs.gov.br/publicos/decreto562020_22114858.pdf?fbclid=IwAR3TZBX3sV3CFBlS7KtbaK0pLTbln_V4YvK2q6TW83VkdNL817OW7X8ckHU (Decreto Municipal 56/2020 de Viamão)
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/sociedade/a-destinacao-da-merenda-escolar-em-tempos-de-isolamento-social/
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