A Europa é um país. Ásia, África e América também são. O Uruguai faz divisa com os Estados Unidos, a França é um país da América do Sul e Paris é seu país vizinho. Em qual continente fica o Brasil? Não sei. Essas e outras afirmações absurdas já apareceram várias vezes em provas escolares e muitos professores devem estar se identificando ao lê-las aqui.
Cada vez que leio (e ainda leio!) esse tipo de resposta, questiono-me sobre o meu ofício de professora de História. De que adianta concentrar esforços em explicar a história de “zuzu”, se não está claro para meu público o que ou quem é “zuzu”. No caso aqui, “zuzu” é apenas uma palavra que, no contexto desse artigo, não possui significado algum.
E talvez seja exatamente isso o que ocorre com os estudantes. Leciono em uma escola da periferia de Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre. A realidade da maioria dos discentes – eu me nego a chamá-los de alunos – é de limitados recursos. Vêm de famílias humildes, muitas vezes desestruturadas, com poucos horizontes além da realidade que conhecem.
Como posso eu querer que um adolescente de 12 anos, que vem para a escola com fome, saiba exatamente me dizer a localização de Canaã em relação à Mesopotâmia ou o Vale do Nilo se a viagem mais legal que esse estudante fez na vida foi uma excursão para Tramandaí? Embora essa localização tenha sido estratégica na Antiguidade e muitos de nossos costumes hoje terem origens nos povos daquela região. Como vou querer que jovens que vivem com o olhar tão atento às suas telas de celulares ao ponto de se esbarrarem no pátio da escola sem perceber, cujo único mundo que conhecem são as (fake?) notícias que recebem em suas redes sociais ou os vídeos de seus youtubers preferidos, entendam uma disputa antiga entre França e Alemanha pelo controle da Alsácia-Lorena, rica em produção de carvão (energia!) e que os Estados Unidos e o Japão não estão em lugares opostos no planeta, mas que ambos são banhados pelo Oceano Pacífico e tinham interesse no domínio da região da Manchúria. (Professora, o que é Manchúria?)
Aos poucos eu percebi que não bastava mostrar os mapas ou o globo. Era preciso mais. Era preciso estimular os estudantes a construírem os espaços, cada continente, cada mar, cada grande ilha. Eles precisavam manusear o mapa. Dar sentido ao desenho. Pintar a água até a mão cansar e dizer para o colega “agora tu continua daqui do Golfo Pérsico até a Oceania e depois me devolve o lápis” ou então “tu tá desenhando errado a Sibéria, presta atenção” ou ainda “cuida na hora de pintar o Mar Mediterrâneo pra não afundar Sicília ou Creta”.
Em 2018, quando estava encerrando minha licença-maternidade, entrei em contato com a professora substituta para saber em que parte do conteúdo estavam, para que eu pudesse preparar meus planos de aula. A colega estava preocupada com o rendimento do 6º ano, pois era uma turma agitada e dispersa. Pus-me a pensar estratégias para fazer uma revisão e acelerar os conteúdos para não atrasar o ano seguinte com muitas retomadas. Foi então que eu elaborei um trabalho geral sobre as civilizações antigas que eles já haviam estudado.
Ao retornar à sala de aula, propus que se dividissem em grupos, os quais elegeriam copistas. Cada grupo teve de pesquisar sobre uma civilização já estudada naquele ano. Enquanto os integrantes elaboravam uma pequena ficha técnica com dados básicos de suas civilizações e uma bandeirinha, os copistas ficaram reunidos um uma mesa separada, contendo um mapa mundi, papel manteiga, lápis e borrachas. Coube aos copistas copiar o mapa, pintá-lo e colar sobre uma chapa de isopor.
Com a base pronta (mapa sobre o isopor), todos os estudantes se reuniram ao redor dessa mesa e, um grupo de cada vez, falou um pouco sobre sua civilização, colou a ficha técnica ao redor do mapa e fixou sua bandeirinha na região de origem de sua civilização. Dessa forma nasceu nossa maquete do mundo antigo.
Conforme fomos avançando nos conteúdos, mais elementos eram incorporados à maquete, como a marcação da Rota da Seda e as regiões de influência grega, romana e bizantina. Os estudantes disputavam a chance de fazer novas bandeirinhas para alimentar o material didático.
Quando o ano letivo se encerrou, a maquete foi guardada e reutilizada no ano seguinte, com a mesma turma já no 7º ano. Ajudou muito na revisão dos conteúdos. Depois tiramos as bandeirinhas e fizemos outro mapa para sobreposição. Dessa forma, as marcações das civilizações anteriores auxiliavam a compreender as alterações territoriais de alguns povos.
Mas como imprevistos podem ocorrer, um dia a maquete não estava na sala. Em seu lugar, apenas restos de isopor. Vandalismo de estudantes do outro turno. Era preciso buscar uma alternativa. Os construtores da maquete estavam indignados e exigiam uma punição aos destruidores. Queriam refazê-la. E foi refeita. Com muito carinho e... com a participação de discentes da turma na qual estudam os que a destruíram. Em um sábado letivo, as duas turmas ficaram juntas e essa era a melhor oportunidade para acalmar os ânimos. A nova maquete ficou ainda mais bonita e é muito útil no cotidiano. E o 6º ano também produziu com entusiasmo sua maquete, a qual os acompanhará até o encerramento do Ensino Fundamental.
Essa experiência favorece tanto o entendimento dos conteúdos históricos, quanto os aspectos sócio-afetivos. Os estudantes mostram-se zelosos com o material didático e sempre procuram contribuir positivamente durante as aulas teóricas. A noção espacial também melhorou, bem como a percepção espaço-tempo (relação entre notícias atuais sobre lugares onde viveram as civilizações que estudamos). Um bom exemplo de como o trabalho em equipe e a criatividade podem trazer mais entusiasmo à sala de aula.
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