Deficiência intelectual - uma experiência de inclusão no ensino de História

Se você está lendo esse artigo, provavelmente está vivenciando uma situação de inclusão (como familiar ou docente) ou tem curiosidade no assunto. A legislação brasileira garante o direito à educação básica às pessoas com necessidades especiais – o que é excelente!1 Contudo, você já parou para pensar de que modo as universidades preparam os futuros professores para atender aos estudantes com deficiência ou com altas habilidades? Posso dizer com segurança que muitas universidades não o fazem nas licenciaturas.

Eu me formei em uma das melhores universidades do Brasil e, durante minha graduação, senti falta disso. É claro que muita coisa ainda está mudando na formação dos professores, mas este tema é ainda muito delicado, considerando-se que existem muitos tipos diferentes de necessidades especiais. E de modo algum pretendo aqui debruçar-me em críticas às instituições de ensino superior. Estão fazendo o melhor que podem para se adaptar. Muitas delas com louvor! O que trago é uma divagação sobre nós, docentes do ensino básico, não raras vezes assoberbados em nossos egos, sentindo-nos senhores do conhecimento. Então, um belo dia, aparece em nossa folha de chamada alguém, cujos processos mentais utilizam caminhos diferentes dos nossos e sobre os quais nossos planos de aula não surtem efeito algum.

Trago aqui a experiência recente que tive.

A estudante J iniciou os estudos na turma da manhã quase na metade do primeiro trimestre. Quando a recepcionei na sala de aula, eu não sabia que se tratava de alguém matriculada em inclusão, pois nada em sua aparência ou comportamento remetiam à impressão de diferente dos colegas.

Era aquele um dia de entrega de trabalhos atrasados. Chamei J na minha mesa e falei sobre como o trabalho deveria ser feito, estabelecendo o prazo para a entrega. Ela pareceu não entender a orientação, mas não disse que não havia entendido. Pedi que trouxesse em minha mesa seu caderno e caneta e fui ditando as orientações. A letra era bonita, mas J apresentou muita dificuldade em transcrever comandos simples que lhes eram ditados. Considerei isso preocupante, posto se tratar de uma turma de 8º ano e, sendo eu professora de História, precisava fazê-los compreender as mudanças de pensamento da sociedade ocidental que culminaram no que usualmente chamamos de Idade Contemporânea 2. Mas como fazer isso com alguém que notadamente parecia não compreender um ditado simples?

Perguntei se ela costumava retirar livros da biblioteca e a resposta foi negativa. Orientei que adotasse esse hábito, pois, sendo o conteúdo do 8º ao denso, ela precisaria melhorar sua compreensão linguística.

Porém, tudo mudou quando, ao chegar em minha casa, verifiquei no aplicativo de mensagens instantâneas a informação da professora de inclusão da escola referente à estudante de inclusão J, a qual havia mudado de turno. Opa! Neste caso, minhas visão, postura e práxis deveriam ser adaptadas à necessidade da adolescente.

No dia seguinte, conversei com a orientadora educacional e com a professora de inclusão da escola para saber qual era o diagnóstico de J e também seu histórico em sala de aula. A jovem possuía laudo de deficiência intelectual. Segundo relatos de outros professores, apresentava episódios de olhar fixo e, com frequência, conversava sozinha como se houvesse alguém ao lado dela. Não era agressiva e se relacionava bem com os colegas. A família, entretanto, era resistente sobre investigar a possibilidade de distúrbio psicológico.

Como, para a turma em questão, eu também lecionava Artes, conversei com a professora de inclusão sobre a possibilidade de trabalharmos juntas materiais no quais predominassem três cores: azul, branca e vermelha, relacionando-as a sentimentos. Assim, o azul deveria estimular sentimentos relacionados à noção de liberdade, o branco à fraternidade e o vermelho à igualdade.

Nas duas semanas que se seguiram, observei que J permanecia apática em relação às atividades propostas. Se eu escrevia algo no quadro, ela copiava em seu caderno sem diferenciar se a informação fazia ou não parte do conteúdo (costumo escrever no quadro a programação: chamada, entrega de trabalhos, etc). Se propunha a cópia de um mapa, ela o fazia apesar de não vincular sentido ao desenho recém-realizado.

Uma semana antes da prova trimestral de História, durante o período de Artes, enquanto fazíamos uma atividade com plantas, estimulei J a perceber as diferentes texturas e aromas. No dia seguinte, no período de História, reservei um tempo para dar-lhe atenção uma especial. Orientei sobre o preenchimento do mapa das colônias espanholas na América. Na sequência, peguei três lápis da estudante e montei um tripé sobre seu caderno, sustentando um pequeno tubo de cola. Expliquei que, sempre que algo for colocado sobre dois pontos de apoio, irá cair. No entanto, se forem três pontos de apoio, formando um tripé, sustentar-se-á. Citei o exemplo de alguns modelos de cadeiras que possuem três pés. Expliquei que, assim como o tubo de cola estava sustentado sobre os três lápis, o pensamento e as crenças humanas também podem se sustentar sobre uma base trina e que, no modelo que fiz sobre seu caderno, aqueles três lápis eram as bases do Antigo Regime, modelo econômico, social e político que justificava o jeito de viver do tempo que estava representado no mapa que ela acabara de desenhar.

Complicado? Naturalmente! J não tinha base intelectual capaz de discernir o que foi o Antigo Regime, tampouco de explicar o que são estruturas econômicas, sociais e políticas. Porém ela compreendeu que, se retirássemos um lápis, a cola iria cair.

Foi então que eu substituí os lápis da estudante, um a um, pelas minhas canetas de corpos vermelho, azul e branco, explicando que, assim como a base do pensamento mudou, o pensamento e as crenças das pessoas também mudaram. E, neste momento, atribuí sentimentos à nossa conversa.

Primeiramente mostrei a caneta azul e lhe disse que essa era a cor da liberdade. Falei que ser livre para seguir suas escolhas é bom. J se mostrou interessada. Mostrei a outra, de corpo branco, e disse que essa era a cor da fraternidade, que, a partir do momento que as pessoas são livres e respeitam a liberdade dos outros, elas se tornam fraternas. O semblante de J mudou. Pela primeira vez, percebi um brilho de curiosidade no seu olhar. E J concordou com a noção de fraternidade demonstrando sentimento. Então falei que a vermelha era a cor da igualdade, que, sendo as pessoas livres e fraternas, são capazes de entender e aceitar que todos são iguais.

Neste momento, J parecia bem animada. Então eu lhe disse que esse novo tripé, cujas bases são liberdade-azul, fraternidade-branca e igualdade-vermelha foi a base da mudança de pensamento das pessoas num período de grandes transformações e revoluções.

Mostrei-lhe o atlas, apontando bandeira que possuem as três referidas cores. Comecei pela francesa, depois a estadounidense, haitiana e a seguir olhamos outras, como a australiana. Percebi que outro estudante (o qual tinha histórico de absenteísmo, caderno incompleto e descompromisso com entrega de trabalhos) se interessou pela explicação que eu dava para J e ficou nos observando atentamente. A seguir, alguns colegas se aproximaram para ouvir essa explicação.

Creio que a inclusão seja mais que uma adaptação: seja uma troca entre as partes. O incluso sendo inserido no contexto geral, o professor tendo a possibilidade de aprender e se aprimorar mais e os demais estudantes entendendo que há formas diferentes de se chegar a um resultado esperado e que a vida em sociedade pressupõe conviver com diferenças.

Conversei com um amigo, graduando em moda na ocasião, sobre o caso de J, pedindo-lhe sugestões de tons para trabalhar as cores-sentimentos. Ele me indicou o uso de cores com máxima saturação, pois são as que causam maior estímulo e geralmente são utilizadas em campanhas publicitárias. Esse meu amigo3 me enviou exemplos cromáticos e eu imprimi em papel canson os cartões azul, vermelho e branco.

Entrei também em contato com o professor Nilton Mullet Pereira, da Faculdade de educação da UFRGS, solicitando orientação sobre como proceder neste caso. Ele foi bastante cordial e me sugeriu uma bibliografia no campo da fabulação, que trata de trazer um pouco do lúdico para o discurso em sala de aula, tornando o ambiente mais leve4.

Combinei com a professora de inclusão que a prova trimestral de J seria feita na sala de recursos. Na prova (cujos conteúdos eram as colonizações portuguesa, espanhola e inglesa na América) constava um mapa do continente no século XVIII para colorir. Os oceanos estavam representados em cinza propositalmente para que a cor azul não fosse utilizada em hipótese alguma. O enunciado propunha que a estudante atribuísse uma cor para cada item da legenda (colônia portuguesa, colônias espanholas e colônias inglesas) e pintasse seus respectivos territórios no mapa. Na parede, estava afixado um mapa do Brasil e a estudante dispunha de livro didático com mapas das colônias espanholas e inglesas para consulta.

Como o conteúdo era referente ao período anterior à Revolução Francesa, as cores da liberdade, fraternidade e igualdade não poderiam ser usadas nessa avaliação. Os cartões com as cores foram mostrados a J no início da atividade, salientando que, sendo o mapa de período anterior à mudança de pensamento, aqueles sentimentos não poderiam aparecer na pintura. Os cartões também ficaram disponíveis para J comparar quais cores poderia ou não escolher na caixa de lápis. Encerrada a avaliação, todos os materiais foram retirados, com exceção dos três cartões, sobre os quais a professora de inclusão conversou com a jovem denominando-os não por suas cores, mas pelos seus respectivos sentimentos. Iniciou-se, assim, para J o segundo trimestre.

Na véspera da prova, fiz uma revisão de conteúdos com a turma, ao que J pareceu bem apática para copiar do quadro. Copiou menos do que de costume. No dia seguinte, a professora de inclusão acompanhou J conforme orientado. Ao final da avaliação, acompanhou J até a sala de aula e me mostrou o documento. De fato, mesmo com todos os mapas para consulta, J não conseguiu associar a legenda à imagem, apresentado um resultado absolutamente confuso. No entanto, em nenhum momento as cores vermelha, azul e branca foram utilizadas, nem mesmo por equívoco. E isso era ótimo! Ela já estava associando as cores aos sentimentos.

A professora de inclusão me disse também que conversara com o irmão de J e ele estava disposto a convencer a mãe a considerar levar a jovem a uma consulta psiquiátrica para uma avaliação. Era de conhecimento da equipe escolar que a estudante iniciava o ano tranquila e, conforme os meses se passavam, ela começava a chamar os docentes para contar que ouvia umas vozes que a xingavam de coisas que ela não sabia o que era. E assim seu desempenho escolar se tornava quase nulo.

Entrei em contato com minha amiga psicopedagoga, Patrícia Agne5, e lhe relatei a situação pedindo apoio. Ela elaborou um excelente projeto psicopedagógico de seis semanas com base na relação cor-sentimento, aliando outros elementos como estórias e música, para ser desenvolvido na sala de recursos. E assim fizemos: nos dias que tinham períodos de História e Artes, J ficava na sala de aula com a turma, nos dias em que os períodos eram somente de História, J ficava na sala de recursos com a professora de inclusão. O desempenho da adolescente nas atividades foi, em princípio, insuficiente e, nesta época, ela começou também a apresentar alguns problemas de comportamento, o que levou os colegas (principalmente as meninas) a se afastarem dela.

Um pouco depois daquela prova, na aula de Artes, saí com a turma para o pátio e pedi que fizessem um círculo com suas cadeiras, de costas para o centro do círculo. Era uma manhã quente e ensolarada e estávamos no sol. O sol era o elemento fundamental da atividade, cujo nome era Luz e Sombra. Entreguei folhas aos estudantes e orientei que desenhassem a paisagem que viam (por isso o círculo, assim cada desenho sairia diferente) e que tivessem total atenção ao nome da atividade. Repeti várias vezes o nome da atividade enquanto eu circulava entre os estudantes observando os desenhos. A primeira pessoa que se atentou em desenhar as sombras (e o fez automaticamente na composição das formas) foi J. Chamou-me atenção que ela estava muito além dos colegas na percepção da diferença entre luz e sombra e eu relatei imediatamente isso, tanto à professora de inclusão, quanto à supervisora. Tínhamos outra pista sobre os processos mentais de J.

No segundo trimestre, quando trabalhávamos sobre a independência dos EUA, os estudantes apresentaram um teatro sobre a Festa do Chá de Boston6. J participou como atriz, representando uma suposta indígena (sem falas, apenas movimentos). O fez muito bem e em perfeita harmonia com os demais atuantes na peça. Eu fotografei esta avaliação e passei para conhecimento dos meus colegas e da equipe diretiva, supervisão e orientação. Dois meses depois, sua prova na sala de recursos consistia em relatar como foi essa experiência do teatro. Questionada pela professora de inclusão, J negou se lembrar deste conteúdo. Não sabia o que era a Festa do Chá de Boston e alegou que não veio no dia da tal peça, pois não lembrava de ter visto um teatro. Confesso que fiquei desanimada.

O terceiro trimestre foi frustrante. Nada mais gerava estímulo a J, que seguidamente faltava às aulas e, quando comparecia, ou estava completamente desligada de tudo ao seu redor com olhar fixo na parede e um sorriso no rosto, ou me chamava para fora da sala para me contar os xingamentos das vozes que ouvia e me perguntar se ela era tudo aquilo de ruim que as vozes falavam para ela. Veja bem: eu tinha uma turma de 8º ano do ensino fundamental atrasada no conteúdo, às vésperas da implantação da nova BNCC, agitada, que eu simplesmente precisava deixar sozinha na sala para sair no corredor e consolar uma adolescente visivelmente assustada porque estava sendo xingada por vozes que somente ela ouvia. Se você que está lendo esse artigo agora é professor do Ensino Fundamental, sabe exatamente o tamanho dessa pressão. Mesmo tendo o apoio da equipe profissional, em uma grande escola, muitas coisas podem ocorrer simultaneamente.

Na última semana antes do fechamento anual das notas, em meio à agitação dos estudantes que queriam saber com que nota ficaram e outros querendo entregar trabalhos atrasados, J veio na minha mesa e me perguntou quais trabalhos ela ainda precisava fazer e qual material precisava trazer. Considerando que, mesmo que eu a tenha visto participar de uma ou outra atividade de Artes, J não entregou efetivamente nenhum trabalho, esse é aquele momento que o professor sente vontade de apertar o botão “ESC” no teclado da vida e acordar só durante as férias. Resignadamente, orientei a estudante que trouxesse umas têmperas na semana seguinte, mas confesso que nem consegui auxiliá-la.

Na última semana de aula, as turmas estavam fazendo atividades recreativas e eu optei por utilizar a sala de aula do 9º ano para fechar os diários de classe e atender os estudantes que quisessem tirar alguma dúvida. J veio na sala conversar comigo. Eu estava cansada e, ao vê-la, senti-me ainda mais desanimada e frustrada, pois acreditava que meus esforços com ela tinham sido em vão. Fiz então a pergunta cuja resposta no fundo eu temia ouvir, esperando um insucesso em meu trabalho em face ao relato dos meus pares sobre o histórico de aprendizagem da jovem:

- J, tu te lembras de alguma coisa que estudamos neste ano?

Ela fez uma pausa, abaixou a cabeça como que procurando algum lampejo de recordação e acenou negativamente com timidez. Então ergueu a cabeça com um sorriso, como que reconhecendo alguém em meio a uma multidão:

- Eu lembro das cores! Elas têm a ver com sentimentos, né, sora?

Valeu a pena.

Padrão de cores utilizado nos cartões.

Notas:

1 BRASIL. Lei nº 13146, de 06 de julho de 2015. Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em 23 fev. 2020.

2 Esta ocorrência foi anterior à implantação da Nova Base Comum Curricular.

3 Jean Alves pode ser contatado profissionalmente através do link https://www.behance.net/O_Jeanalves

4 FRAGA, Gabriel Torelly ; PEREIRA, Nilton M. . ENSINO DE HISTÓRIA, MEMÓRIA E FABULAÇÃO. Aedos: Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, v. 06, p. 16-33, 2014. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2020.

5 Patrícia Agne pode ser contatada profissionalmente através do e-mail [email protected] .

6 Em 1773, em resposta à Lei do Chá com a qual o Parlamento inglês concedera o monopólio do comércio de chá à Companhia das Índias Orientais, colonos da América disfarçaram-se de indígenas e lançaram ao mar o carregamento de três embarcações inglesas atracadas no porto de Boston. Essa ação, conhecida como Festa do Chá de Boston, gerou retaliação do governo britânico culminando no processo que desencadeou a independência dos EUA.

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