O conto Civilização de Eça de Queirós possui a estrutura embrionária do romance A Cidade e as Serras. Contendo princípios do Naturalismo e aproximando-se do romance de tese, tem como tema central a oposição vida moderna/rural. Trata-se de uma crítica à civilização burguesa, industrial e materialista, e mais diretamente às suas invenções científicas.
A começar pelo título, o narrador satiriza toda a classe burguesa de sua época. Daí, passa a desencadear episódios cômicos que afirmarão sua crítica a essa sociedade. Note a forma como narra a infância abastarda de Jacinto:
Um lindo rio, murmuroso e transparente, (...) não ofereceria, àquele que o descesse numa barca cheia de almofadas e de champanhe gelado, mais doçura e facilidades do que a vida ofereceria ao meu camarada Jacinto. (p. 51)
No entanto, toda essa vida de Jacinto, cheia de regalos, não fazia dele uma criatura feliz. Aos vinte e oito anos, ele lia Shopenhauer, Eclesiastes e vivia sempre entediado. Esse tédio, segundo nos propõe o conto, advinha da civilização material. Jacinto procurava preencher sua carência através da incorporação das invenções científicas na vida cotidiana. Percebe-se, com isso, que Jacinto era fortemente influenciado pela corrente positivista, valorizando supremamente a ciência e o progresso.
(...) a vida era para Jacinto um cansaço – ou por laboriosa e difícil, ou por desinteressante e oca. Por isso o meu pobre procurava constantemente juntar à vida novos interesses, novas facilidades. (p.55)
Na segunda parte do conto, o tom zombeteiro dá lugar à compreensão simpática, chegando às vezes à exaltação. Ao invés de existir tipos caricaturais, o narrador nos dá longas descrições comovidas; o olhar malicioso dá lugar a um gesto de ternura. Eis aqui uma amostragem da particularidade de Eça: este, conhecido como um “demolidor” terrível e irônico da vida portuguesa de sua época, passa a ser um caloroso entusiasta de seu país, confiante nas forças do grandioso passado de Portugal e louvando o seu “alienamento” em relação às novidades do progresso.
A oposição cidade/campo é tradicional na literatura, sendo esta importante na criação do gênero bucólico, cultivado por grandes escritores desde a Antigüidade. Embora este conto de Eça pareça ser simplório, é possível lê-lo com um novo olhar. Na primeira parte, a crítica à civilização ganhou um ingrediente inesperado de comicidade, justamente porque, o que se considerava as fantásticas novidades do progresso ali satirizadas, para nós não passam de velharias datadas ou de coisas que já estão integradas à nossa vida cotidiana. Na segunda parte, o narrador descreve, com penosidade, o ritual tedioso de Jacinto ao levantar-se, onde era preciso seis tipos de escovas para pentear-se, apontando que, mesmo possuindo todas as regalias, “ele sempre regressava mais murcho, com bocejos mais calvos”. Daí sua identificação com o Eclesiastes,
Tudo é vaidade ou dor que, quanto mais se sabe, mais se pena, e que ter sido rei de Jerusalém e obtido os gozos todos da vida só leva a maior amargura (...). (p.55)
Quanto à terceira parte, porém, o ecologismo de nossos dias pede nele uma antecipação da atitude corrente de valorização à natureza e à vida natural: um verdadeiro manifesto ecológico, que exalta o campo, sede das fontes da vida, em detrimento da cidade artificial e nociva. Essa valorização do campo contra a cidade constitui uma particularidade, tanto neste conto do Eça, como no romance realista-naturalista As Cidades e as Serras, que se caracterizava por ser urbano e progressista.
Em Civilização, Eça abandona o negativismo da fase anterior, apontando soluções para o problema de seu personagem. Neste caso, a fuga para da cidade para o campo, o contato direto com a natureza, através do plantio, da criação de animais, é que curará “o lixo da civilização” presente em Jacinto. Ele, conquistado pelas virtudes simples e sadias da vida que antes desprezava, transferirá todo o seu horror à cidade, com sua artificialidade doentia, seus excessos e sua falsidade.
A falência da civilização aparece no final do conto, quando o narrador, ao ir à casa velha de Jacinto a fim de pegar alguns livros, afirma:
Quis lavar as mãos, maculadas pelo contato com estes detritos de conhecimentos humanos. Mas os maravilhosos aparelhos do lavatório, da sala de banho, enferrujados, perros, dessoldados, não largaram uma gota de água; e, como chovia nessa tarde de abril, tive de sair à varanda, pedir ao Céu que me lavasse. (p.66)
Existe ainda uma previsão do futuro, onde estas invenções que estavam no auge, não passariam de futilidades:
Através das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnífico século XIX se assemelharia, um dia, àquele Jasmineiro abandonado e que outros homens, com uma certeza mais pura do que é a vida e a felicidade, daria, como eu, com o pé no lixo da civilização e, como eu, ririam alegremente da grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem. (p.67)
Esta é a maior crítica à modernidade, pois o narrador mostra que a vida feliz está totalmente desarraigada da vida moderna, e que só seria possível viver feliz consigo mesmo e com o mundo, se cada um vivesse longe da civilização. Viver como agora vive Jacinto: “na varanda, em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade” vendo, sob a tarde calma “a boiada recolher-se entre o canto dos boieiros ao tremeluzir da primeira estrela”.
Fontes ACHCAR, Francisco. A Cidade e as Serras: Eça de Queirós. CERED.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo, Cultrix, 1999.
NICOLA, José de. Língua, Literatura e Redação. São Paulo, Scipione, 1991.
TUFANO, Douglas. Civilização e outros contos: Eça de Queirós. São Paulo, Moderna, 1996, p.51 – 67.
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