“Estrela da Vida Inteira” (1965) é uma obra que reúne as poesias completas de Manuel Bandeira, que se destaca em nossa literatura por solidificar a poesia modernista em todas as suas implicações: o verso livre, liberdade criadora, linguagem coloquial, irreverência e a ampliação das temáticas comumente usadas nesse período, cultivando a capacidade de extrair poesias das coisas mais simples do cotidiano.
* imagem meramente ilustrativa. | |
Editora: | Nova Fronteira |
Autor: | Manuel Bandeira |
ISBN: | 9788520919750 |
Origem: | Nacional |
Ano: | 2007 |
Edição: | 1ª |
Número de páginas: | 574 |
Acabamento: | Brochura |
“João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado”. (Estrela da Vida Inteira, p. 117)
Os poemas desta coletânea tratam também de temas já exploradas por escritores de diversas estéticas, mas nesta obra assumem uma nova dimensão. A saudade, a infância e a solidão – temas constantes no Romantismo – apresentam uma postura crítica, de forma simples e despojada:
“Então me levantei
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei”.
“Evocação do Recife” trata de uma forma subjetiva o “Recife da infância do eu-lírico”. Ele envolve vários temas, ligados ao folclore e à cultura popular. Descreve a cidade do Recife no fim do século XIX e, ao mesmo tempo, tematiza a infância, abordada numa perspectiva de experiência de vida: não idealizada, mas concreta e, quando contratada com o presente, acentua sua trágica condição.
“A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da dona Aninha Viegas”. (Estrela da vida inteira, p. 114)
A poesia fala das brincadeiras de roda com suas cantigas infantis, os pregões dos vendedores, as crenças populares, os nomes das ruas, os boatos da vizinhança. Além disso, critica abertamente o português usado pelas pessoas cultas, exaltando a fala espontânea e natural do povo brasileiro: a língua viva.
“A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada...”
A irregularidade métrica e a ausência de pontuação passam a ser uma figura de expressão usada pelo poeta a fim de sugerir a rapidez das ações: “Os homens punham o chapéu saiam fumando” e a violência das águas durante as cheias: “Cheias! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu”. Essa enumeração caótica, neste extenso verso, imita a força da água que, arrastando tudo o que encontra pela frente, promove o caos.
Diante da realidade muitas vezes opressora, dois temas se destacam como “escape” desta realidade: o paraíso sonhado - “Pasárgada” - e o paraíso perdido – a infância.
"Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei
“Vou-me embora pra Pasárgada”.
O poema “Vou-me embora pra Pasárgada” revela as delícias do lugar sonhado, recompensa pelas frustrações da “vida besta”, enquanto a infância passa a ser sinônimo de um paraíso perdido, que pode ser recuperado pela memória.
Porquinho-da-Índia
“Quando eu tinha seis anos Ganhei um porquinho-da-índia. Que dor de coração me dava Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão! Levava ele prá sala Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada”.
Apesar do poeta não ter participado da Semana de Arte Moderna ativamente, por considerar um exagero os ataques feitos aos simbolistas e parnasianos, “Estrela da vida inteira” é um misto das estéticas simbolistas, parnasianas e também modernistas que transparecem a estranheza do poeta frente ao mundo que o cerca e de que forma esses acontecimentos se refletem em seu ser íntimo. Assim, emerge desta coletânea a solidão, o humor, a indignação frente à poesia “pré-fabricada” – “Estou farto do lirismo comedido”, uma ironia por vezes amarga, a tristeza, a idealização de um mundo melhor, retratos de cenas cotidianas, certa descrença às vezes – “A vida... não vale a pena e a dor de ser vivida”.
Alguns poemas famosos de “Estrela da vida inteira”:
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
PNEUMOTÓRAX
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido que não foi. Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
ARTE DE AMAR
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
ANTOLOGIA
A vida Não vale a pena e a dor de ser vivida Os corpos se entendem mas as almas não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
Vou-me embora p'ra Pasárgada! Aqui eu não sou feliz. Quero esquecer tudo: - A dor de ser homem… Este anseio infinito e vão De possuir o que me possui.
Quero descansar Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei… Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Quero descansar. Morrer Morrer de corpo e de alma. Completamente. (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)
Quando a Indesejada das gentes chegar Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, A mesa posta, Com cada coisa em seu lugar.
Fontes BANDEIRA, Manuel de. Estrela da vida inteira. 2 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1970.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira em diálogo com outras literaturas. 3 ed. São Paulo, Atual editora, 2005, p.417-23.
NICOLA, José de. Literatura Brasileira: da origem aos nossos dias.6 ed. São Paulo, Scipione, 1987, p. 206-11.
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