Gramática Descritiva

Sob a ótica de Silva (1999, p. 15-16), a chamada gramática descritiva tem por objetivo descrever as observações linguísticas atestadas entre os falantes de uma determinada língua. Sem prescrever normas ou definir padrões em termos de julgamento de correto-incorreto, busca-se documentar uma língua tal como ela se manifesta no momento da descrição. Nessa perspectiva, a gramática descritiva tem uma visão despida de qualquer preconceito linguístico. O seu campo de atuação é mais amplo, visto que contempla toda a diversidade, não se restringindo à abordagem da variante padrão. Para uma compreensão mais apurada do objeto de estudo da gramática descritiva, observe atentamente a letra desta canção:

Cuitelinho

Cheguei na beira do porto Onde as ondas se espaia As garças dá meia vorta E senta na beira da praia E o cuitelinho não gosta Que o botão da rosa caia.

Quando eu vim da minha terra Despedi da parentaia Eu entrei no Mato Grosso Dei em terras paraguaia Lá tinha revolução Enfrentei fortes bataia.

A tua saudade corta Como aço de navaia O coração fica aflito Bate uma a outra faia E os óio se enche d’água Que até a vista se atrapaia.

Percebe-se que essa canção se constrói por meio de uma linguagem que foge aos padrões instituídos. Diante disso, eis a pergunta: Foi possível compreendê-la? Certamente, você concluiu que sim. De que maneira, a gramática descritiva realizaria a análise de Cuitelinho? Obervando que, de forma bastante expressiva e poética, o eu lírico narra toda a sua dor desde a partida de sua terra natal, marcada pela dura despedida de seus parentes, rumo à batalha em terras paraguaias, remetendo-se à Guerra do Paraguai, considerada o conflito armado mais sangrento da América do Sul. A incerteza do retorno à pátria, por estar em um campo de concentração, onde enfrenta fortes bataia, faz com que a imensa saudade da pessoa amada dilacere o seu coração como aço de navaia. Constata-se que a canção é fruto da cultura popular, representada em um linguajar típico, bem próximo da língua falada, sobretudo, dos interiores do Brasil.

Descrevendo-se a escrita em si, nota-se a proximidade com a forma de falar, concebendo à canção um tom mais íntimo. Os vocábulos espaia, parentaia, bataia, navaia não apresentam o “lh”, já que ele não é pronunciado, sendo substituído pela vogal “i”. A ocorrência do singular em sentenças como As garças dá meia vorta/ E senta na beira da praia; E os óio se enche d’água não interfere na compreensão da canção. Repara-se a troca do “l” pelo “r” na palavra vorta. Percebe-se, também, um traço da informalidade, recorrente na fala dos indivíduos, independentemente do grau de domínio do padrão culto que possuam: Cheguei na beira do porto. O “na” é formado pela aglutinação de (em + a), e comumente se faz presente na oralidade em frases como “Você vai na festa hoje?”.

Cuitelinho apresenta a estrutura que nos remete ao gênero poema, constituindo-se de três estrofes, cada uma com seis versos. A rima se realiza no segundo, quarto e sexto versos que compõem cada estrofe, por meio de uma mesma terminação: aia. A construção de metáforas como a tua saudade corta como aço de navaia e o coração fica aflito bate uma a outra faia enaltecem a riqueza poética da canção.

Enfim, a “gramática descritiva” objetiva estudar a língua em suas diferentes manifestações, rompendo com qualquer tipo de estigma. Nesse cenário, a canção Cuitelinho cumpre com a sua finalidade comunicativa, que consiste em sensibilizar o (a) leitor (a) /ouvinte, visto que duras vivências são confidenciadas de maneira bastante comovente. Foi produzida, por intermédio de uma linguagem genuína, simbolizando determinada cultura, isto é, em consonância com o seu contexto sociolinguístico. Portanto, não se compõe de uma linguagem “errada”.

Referências:

NASCIMENTO, Milton; TISO, Wagner. (Adaptação musical). Cuitelinho. In: A arte de Milton Nascimento. Rio de Janeiro, Polygram, 1988.

SILVA, Taís Cristófaro. Fonética e Fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1999.

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