As cenas encontradas no decorrer da história, que concebem a fluidez entre o bem e o mal, juntamente com o popular ligado aos termos em questão em algumas circunstâncias, mostram aos leitores, o acompanhamento desses dois extremos do início ao final do livro.
A religião está presente e o demo também, este, acompanhado de todos os seus sinônimos. Deus é citado, junto de padres, santos, seminaristas, sacerdotes. O paradoxo está estabelecido; Criador e demônio, bem e mal; e é demonstrado dentro das pessoas, que ora são boas e ora são más. Em determinados momentos, usa-se a religião como base de salvação.
Além disso, o meio termo está presente na narrativa de João Guimarães Rosa, prova disto são as indagações entre a Santidade e o Satanás; a celebração e o repudio aos jagunços; ao supor que desejar demais o bem pode ser um princípio de mal. Tais questionamentos e afirmações fazem com que um mundo paralelo seja criado, no qual as coisas não são determinadas, nada é fixo.
A existência ou não do Diabo funciona como núcleo da narrativa, o que traz como frase–parâmetro do romance: “o diabo na rua no meio do redemoinho...”. Esta expressão é encontrada de cabo a rabo na obra Grande Sertão: Veredas. Ao mesmo tempo em que Riobaldo invoca o dito-cujo, ele o renega.
Agora, a seguir seguem fragmentos aleatórios que acompanham a ordem do livro, junto de possíveis explanações coerentes com o contexto em que os trechos estão inseridos.
Na segunda página que inicia a obra, encontra-se um exemplo do tema tratado: “Eu, pessoalmente, quase que já perdi nêle a crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade.” (p. 10) Seguindo esse trecho, Riobaldo conversa com um seminarista que vai ajudar um padre a tirar o Cujo (diabo) do corpo de uma senhora.
Logo, a existência do Demônio é questionada: “O diabo existe e não existe?” (p. 11), e em seguida comparada a uma cachoeira, que é formada a partir de barranco de chão e água; caso a última seja consumida, a cachoeira deixa de existir. Além disso, Riobaldo afirma que o satanás vive dentro das pessoas: “... o diabo regula seu estado prêto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo”.(p. 11)
As primeiras páginas do livro, todas, contêm trechos referentes ao bem e ao mal, muitas delas vinculadas a Deus e Diabo, respectivamente. Segue, inclusive histórias que envolvem família, como por exemplo, a do Aleixo; um homem que era mau, que matou um velhinho só pelo prazer de matar e, um tempo depois os filhos do matador adoeceram e ficaram cegos. Foi então que o pai mudou: “... agora vive na banda de Deus, suando para ser caridoso...” (p. 13) Depois do fato contado, o narrador questiona o porquê das crianças terem sido castigadas ao invés do pai. E o velhinho? Por que ele foi morto de graça? E o tal do Aleixo ainda converteu-se e nomeava-se um homem de sorte por Deus ter tido pena dele e transformar sua alma.
Mesmo que, em muitas partes do livro, a personagem principal faça alusão de jagunço a referências do mal, no momento em que comenta sobre sua pontaria, relaciona esta como um dom vindo de Deus: “Pontaria o senhor concorde, é um talento todo...” (p. 125)
Riobaldo vê Hermógenes como mau, como aquele que gosta de assistir ao sofrimento de outrem. Em determinado momento, compara Hermógenes com Zé Bebelo e, para este, demonstra carinho: “Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um filho deve de gostar do pai.” (p. 132)
Riobaldo em outras partes da trama enfatiza Hermógenes, sempre mostrando muito rancor e, numa dessas demonstrações, cita: “Quando gosto, é sem razão descoberta, quando desgosto, também.” (p 144). Neste fragmento pode-se comprovar o asco que o primeiro sente pelo outro.
A comparação entre amor e ódio também é relevante, até a presença de uma no outro é demonstrada: “Acho que, às vezes, é até com a ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta mais forte.” (p. 145). Aqui, Riobaldo fala a respeito de Otacília, quando chegou na fazenda Santa Catarina e conheceu a moça.
Retornando à questão do Senhor e do Diabo, o jagunço-narrador em certa ocasião se questiona porque ao invés de citar o nome do primeiro, afirmou o segundo: “Me diga o senhor: por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de Deus?” (p. 150).
O questionamento se jagunço podia ser servo de Deus ou se podia contar com o perdão de Deus consistiu em Riobaldo perguntar aos seus companheiros: “Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço – criatura paga para crimes...” (p. 169).
Como resposta pro excerto acima, o próprio Riobaldo é quem replica separando completamente o bem do mal, no caso, o bom do ruim: “... eu careço de que o bom seja o bom e o ruim ruim, que de um lado esteja o preto e do outro o branco...” (p. 169)
Outro caso que aparece na narrativa é o que fala sobre Maria Mutema e Padre Ponte. Quem contou a história para Riobaldo foi Jõe, que recebia a intitulação de contador de casos. Este, em especial, falava sobre a esposa que frequentava demais a igreja e se confessava com a mesma frequência, logo que teve o marido falecido. E, que um tempo depois, teve, também, o padre com que Maria Mutema confessava-se, morto.
A chegada de um missionário para a substituição do Padre Ponte levou a história em questão para outra dimensão; o missionário rezava uma missa, quando a senhora Mutema entrou na igreja e logo ouviu do que discorria a celebração: “A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair.” (p. 172) e completou: “... pode ir me esperar que vou ouvir sua confissão... [...] Que vá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!...” (p. 172).
O que se passou é que o missionário sabia das mortes dos dois e que Maria Mutema tinha a ver com isso; o marido matou enquanto dormia com chumbo derretido no ouvido e o padre morreu de desgosto; a mulher mentiu a ele que tinha matado o marido por amor ao padre. Com todo o sofrimento da mulher assassina, que se arrependeu, alguns diziam que se tornou santa.
Outra questão que envolveu Demônio e Deus ligado aos jagunços foi na página 179, na qual Riobaldo questionou: “Deus, para qualquer um jagunço, sendo um inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas outras horas sem espécie nenhuma, desandava de lá”. Nessa passagem Riobaldo ainda completa que muitos rezavam, e inclusive queriam que novenas fossem realizadas, estas começavam, porém, não se finalizavam.
Em seguida, o protagonista fala sobre o diabo vinculado a Hermógenes; de acordo que o segundo é casado e tem filhos, que prepara festas e lhes dá ensino e, como jagunço é o pior dos piores. Sendo assim, Riobaldo diz: “Aí eu acreditei que tivesse de haver mesmo o inferno [...] e o demônio seria : o inteiro, louco, o doido completo – assim irremediável.” (p. 179)
Bibliografia: CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: ______. Tese e Antítese. São Paulo: Nacional, 1978.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972. 460 p.
GONZAGA, Sergius. Grande Sertão: Veredas: parte I. Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/literatura/livrodomes/2004/09/24/003.htm.
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