O sociólogo, antropólogo e historiador Gilberto Freyre (1900-1987) foi um dos mais importantes intérpretes da formação brasileira. Nascido em Recife, Pernambuco, Freyre se dedicou a escrever sobre a formação histórica de nosso povo e país. Sua obra, ainda permeada por muitas controvérsias, é leitura obrigatória para quem enseje compreender o pensamento social brasileiro.
Publicado em 1933, o ensaio Casa-grande & Senzala - Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal é a mais importante obra do autor. Nela, Freyre apresenta a família como unidade central do processo de colonização brasileira. Essa família expandida - localizada na estrutura da casa-grande, mas que se estende para a senzala, seus agregados e filhos bastardos - seria, mais que o Estado ou o indivíduo, o agente responsável pela formação do Brasil. Na família patriarcal, chefiada pelos senhores de engenho, irão se constituir padrões sociais que saem da esfera privada para dar forma a esfera pública brasileira.
Através de uma rica pesquisa documental, Freyre apresenta uma narrativa inovadora para sua época. Centrada na análise do cotidiano, o texto retrata de forma vívida o dia-a-dia nos espaços domésticos, a arquitetura, os hábitos alimentares e, especialmente, as condutas sexuais do Brasil colonial. Seu método dá relevo aos aspectos econômicos e sociais como processos efetivamente vivenciados no cotidiano. O complexo formado entre a casa-grande e a senzala incorpora e cria uma série de fatores que caracterizam o Brasil colonial: a produção via latifúndio, o trabalho escravizado e a família patriarcal.
A miscigenação é um tema central na obra. Segundo Freyre, a escassez de mulheres brancas e a predisposição dos luso-brasileiros para relações interétnicas, teriam possibilitado uma miscigenação capaz de reduzir as enormes distâncias sociais entre brancos dominantes e não-brancos dominados. É importante notar que Freyre se dedica a contestar as teses eugenistas das décadas anteriores, que culpavam a miscigenação pelo atraso do país e por um suposto processo de “degeneração das raças”. Para Freyre, na miscigenação residia um processo em que a convivência entre contrários se converteria não apenas em uma característica, mas uma verdadeira vantagem original do Brasil.
Ainda que tenha o mérito de dar um sentido positivo a participação dos negros africanos na formação do país, a obra de Freyre é passível de muitas críticas. O autor assume, com um tom quase nostálgico, a perspectiva dos senhores brancos sob uma época em que as condições de vida não eram boas para a maioria dos que aqui viviam. Esse processo de miscigenação, que supostamente teria corrigido a distância social entre a casa-grande e a senzala, aparece na obra de Freyre como pacífico e quase confraternizante. A perspectiva de Freyre dá origem ao chamado mito da democracia racial, em que processos de domínio e violência são apagados para formar uma ideia de que o miscigenação no Brasil gerou um sentido de igualdade e convivência pacífica entre brancos, negros e indígenas.
Essa ideia, ainda que esteja muito viva no senso comum, não é mais aceita no âmbito da historiografia e das ciências sociais. É notável que a colonização brasileira se deu em um processo de extrema violência contra negros e indígenas e, em especial, de violência sexual sofrida pelas mulheres destes grupos. Ainda que a obra de Freyre cometa graves equívocos ao romantizar essas agressões, conhecê-la é essencial para atingir sua superação.
Referência:
CARDOSO, Fernando Henrique. Um livro perene. In: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 48a edição. São Paulo: Globo Editora, 2003
Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/biografias/gilberto-freyre/
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